No alto do mirante, olhando as estrelas de perto, ouvindo os botos cantarem suas histórias, Nega, uma daquelas amigas que a gente tem e que sabe que nunca mais vai ver, me contou da vez que Xande foi encantado pelos seres mais profundos
o menino pediu tanto, gritou tanto, pulou tanto, que sua mãe, vencida pelo cansaço, resolveu levá-lo junto com ela pra tomar banho no olho do Igarapé. Num momento de desatenção de sua mãe, o menino brincando deslizou da tabua onde estava sentado e caiu n’água. E voou n’água. E pediu tanto, gritou tanto, pulou tanto. O cinza, o denso, o leve, o ar, a falta do ar. Choro (sem lágrima), grito (sem som) – descobriu - as mãos (sem dedos), descobriu os pés (sem chão.), descobriu o eterno, a escuridão. Descobriu seu corpo sem alma, sua alma sem limite, o vazio infinito do presente sangrando sem fim.
Se partiu (não sabe dizer) Tenta encontrar o que perdeu. Não consegue encontrar. CINZA LEVE FALTA GRITO. O garoto dorme. Um momento de desatenção: sua mãe desesperada, nua. Não sabe nadar, não sabe secar o poço, não sabe chorar, corre. OLHO BRINCANDO N’ÁGUA – CHORO PRESENTE SANGRANDO. Nauá (homem branco) que passa pela aldeia. Entregue POR DEDOS, implora NO CHÃO, desfigurada EM SOM, molhada DE LÁGRIMAS. que o homem vá até o fundo do poço – pegue teu filho - culpa. .buraco. silêncio. Agora a negra senhora gorda pinga suor/ seus cabelos presos/ seus olhos em chamas/ seu ventre seco. O menino pediu tanto. Lá estava ele. ..Gritou tanto, pulou tanto.. Como um anjo deitado. ..Vencida pelo cansaço.. Sonhando. ..Resolveu levá-lo junto com ela.. Superfície. Água pelo nariz. Ar nos pequenos pulmões. Em pouco tempo, hospital. CINZA GORDA NUA Não acreditou no médico. Via seu filho estranho. ALMA DORME. Ele não brilha os olhos, não dói o choro, não enfeita as brincadeiras, não trata com carinho... BURACO PINGA SECO. Nega, nua durante 2 anos. Sente frio, dor, angústia...
Parece que o moleque ainda cinza-poço sobrevivia da alma da mãe, a sua ficara presa no fundo do poço. ..Deslizou da tábua onde estava brincando.. .Lembro que quem disse isso (não foi qualquer uma, não). NEGRA VENTRE CANSADO Foi Dona Maria. Mais de 70 anos, FUNDO muitos filhos, muitas caças, FALTA muita pamonha e macaxeira pra cuidar da casa, do roçado e do povo da aldeia. Parece que Dona Maria era a curandeira, cuidadeira. PRESENTE Lembro que era ela que esquentava o coração quando a gente tava nua. TEMPO Parece que foi isso que ela fez: vestiu o coração da Nega enquanto fazia um encanto ENFEITA (muito bem encantado) e gritava bem alto o nome do menino. GAROTO SECO Que era pro som ecoar até o fundo do poço e acordar os pedaços do moleque. Que era pra virem logo brincar de dançar naquele corpinho sem vida. Lembro: “SHHHH” – Nega dizia BRILHO N’ÁGUA - Dona Maria disse que a gente tem que ficar dentro desse quarto, FUNDO não pode sair. SEM FIM.
Enquanto a velha encantava os cantos do poço pra trazerem o menino, o corpinho esperava quieto, vazio e sábio sua própria chegada. PARECE QUE LEMBRO.
Quis escrever aqui por que sinto que foi a única vez que tive aquele rio, aqueles botos, Xande, Nega, as estrelas quase dentro dos meus olhos e aqueles segredos fazendo parte de mim...
obrigada, nalu.
ResponderExcluirhistória pra se ouvir debaixo de um candeeiro
achei assustadora
ResponderExcluire obssessiva
ResponderExcluirachei linda
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