De: Clarice Lissovsky <clarice@lissovsky.com>
Data: 17 de março de 2012 15:05
Assunto: Acerca do lixo, da mudança e do que permanece
Para: César Macabu <cesar-loc@aciradm.com.br>
Prezado Senhor César da Imobiliária,
Voltei ontem ao sobrado para retirar o lixo que havia deixado para trás junto a algumas memórias secas e um dúzia de escolhas erradas. Desliguei o painel de luz. Já tendo cancelado minhas contas, não faria diferença mesmo e como ambos conhecemos - apesar da sua distância física e psicológica - a tendência da casa - quiçá de todos nós - ao que chamaremos de autoinflamação, creio que desta forma me senti mais protegida. Ainda da escada, percebi que a videira está se jogando lá de cima, como os desesperados suicidas do World Trade Center, que preferiram o voo ao cheiro da própria carne queimada.
Eu sei, César, que você não tem culpa pelo meu sofrimento, pelo tempo perdido, pelo dinheiro gasto, pelos espaços de cinza entre as palavras, pelo abandono, pelo descaso, pelo mal-humor, pelas rupturas e voltas e rupturas, pelos caminhos elípticos em tornos das mesmas ideias e pelo lixo da sala. Você está apenas fazendo o seu trabalho.
Como a funcionária na terceira mesa `a direita da sua, responsável pelo recolhimento da chaves. Para quem eu expliquei que deixava a residência por oferecer risco de vida e que o lixo estava ensacado na sala, para ser tirado no dia seguinte, quando o caminhão passasse. O lixo poderia ser tirado por alguém da imobiliária - não o senhor, é claro... ambos sabemos que você não vai `as casas que aluga... talvez o rapaz de olhos verdes - pela proprietária ou por seu primeiro empreiteiro, Joel. A guarda-chaves disse que não haveria problema.
Mesmo assim, lhe escrevo pela intimidade que ganhamos nos últimos meses. A água que faltou este tempo todo deve ter ressecado uma parte de mim, porque já não me comovem mais os patos, as portas, as pinças, os potros, os panos e todas aquelas coisas que costumavam fazer cosquinha nas minhas entranhas. O sistema elétrico monofásico me deu curtos monogâmicos. Ambos com sombras-bombas-relógio de um porvir autodestrutivo. No sobrado, as minhas caixas de som sempre estouravam nas notas graves pretas e agudas brancas. Ou tudo gris ou tudo grão. A extensão que pegou fogo abriu um espaço preto para passar um rio na sala. Cascava da tomada ao chão, por onde lacraiava até o meu pé, parando no metatarso do terceiro dedo.
Um dia eu acordei deitada no teto e o chão tinha caído em mim, por causa das infiltrações subterrâneas geradas pelo movimento peristáltico do centro da terra e pela permeabilidade pluvial do terraço. Foram-se os meses com aquelas bolhas de água infiltradas na minha pele de gesso e cal.
Você sabia que um dia o céu vai cair na gente? É o que dizem.
De toda forma, empacotei todas as minhas coisas. Algumas, que ainda moravam nas caixas da última penumbra, eu espalhei pelo terraço e a minha cachorra comeu com farofa. Passou dias arrotando saudades. Como não coube tudo no caminhão, subi com o sofá vermelho e a cachorra nas costas. Quando eu cansava, nos revezávamos. Ela não aguentava muito tempo, porque precisava ficar se coçando das alergias que adquiriu no sobrado, então encostávamos o sofá na calçada e latíamos para os carros que passavam.
Entreguei a chave, mas não me despedi de você, porque estava almoçando. César, como agora, somos amigos, posso te dar um conselho. Você devia procurar um restaurante mais perto da imobiliária. Deve ser muito cansativo ir a este cenáculo a duas horas da imobiliária que você vai todo dia. Procure ser saudável.
Ainda não te disse! Outro dia encontrei Joel e ele me disse que o sobrado ao lado também tem a parte elétrica condenada e que a proprietária alugaria mesmo assim. Pela sua imobiliária. A maquiagem está boa, mas vocês deveriam passar mais blush nas paredes `a esquerda.
Quinze anos e dois terços depois do dia em que não nos despedimos, minha mãe me mandou uma mensagem dizendo que vocês estavam nos ameaçando porque eu deixei o lixo. Tudo bem César, não precisa se culpar, eu sei que foram intimidações carinhosas. Você não acreditaria se eu te contasse o que acontece com o lixo quinze anos e dois terços depois. Primeiro uma nuvem de moscas garante a proteção do embrião, depois crescem braços e pernas molengas como macarrão podre e por último se transmuta num Megazorde de detritos arremessador de ovos, larvas e pupos.
Mesmo que vocês tenham tentado colocar fogo na gente e nos matar de sede e implosão em alguns momentos, eu voltei no sobrado, apesar de todos os riscos, memórias, jus postulandi, buracos de rio, tetos desabando e aquela videira presa, chorando baixinho que nem se matar consegue. Sancho Pança me ajudou, se isso lhe tranquiliza, apesar de ter mais motivos do que você imaginaria para não fazê-lo. Talvez para isso tenhamos invocado forças ocultas, mas só descobriremos em breve. É certo que algo de malígno e lindo aconteceu.
Dê um beijo na esposa e um abraço nas crianças, daqueles em que se fica girando e girando até voar ou cair.
Com carinho,
Clarice
Data: 17 de março de 2012 15:05
Assunto: Acerca do lixo, da mudança e do que permanece
Para: César Macabu <cesar-loc@aciradm.com.br>
Prezado Senhor César da Imobiliária,
Voltei ontem ao sobrado para retirar o lixo que havia deixado para trás junto a algumas memórias secas e um dúzia de escolhas erradas. Desliguei o painel de luz. Já tendo cancelado minhas contas, não faria diferença mesmo e como ambos conhecemos - apesar da sua distância física e psicológica - a tendência da casa - quiçá de todos nós - ao que chamaremos de autoinflamação, creio que desta forma me senti mais protegida. Ainda da escada, percebi que a videira está se jogando lá de cima, como os desesperados suicidas do World Trade Center, que preferiram o voo ao cheiro da própria carne queimada.
Eu sei, César, que você não tem culpa pelo meu sofrimento, pelo tempo perdido, pelo dinheiro gasto, pelos espaços de cinza entre as palavras, pelo abandono, pelo descaso, pelo mal-humor, pelas rupturas e voltas e rupturas, pelos caminhos elípticos em tornos das mesmas ideias e pelo lixo da sala. Você está apenas fazendo o seu trabalho.
Como a funcionária na terceira mesa `a direita da sua, responsável pelo recolhimento da chaves. Para quem eu expliquei que deixava a residência por oferecer risco de vida e que o lixo estava ensacado na sala, para ser tirado no dia seguinte, quando o caminhão passasse. O lixo poderia ser tirado por alguém da imobiliária - não o senhor, é claro... ambos sabemos que você não vai `as casas que aluga... talvez o rapaz de olhos verdes - pela proprietária ou por seu primeiro empreiteiro, Joel. A guarda-chaves disse que não haveria problema.
Mesmo assim, lhe escrevo pela intimidade que ganhamos nos últimos meses. A água que faltou este tempo todo deve ter ressecado uma parte de mim, porque já não me comovem mais os patos, as portas, as pinças, os potros, os panos e todas aquelas coisas que costumavam fazer cosquinha nas minhas entranhas. O sistema elétrico monofásico me deu curtos monogâmicos. Ambos com sombras-bombas-relógio de um porvir autodestrutivo. No sobrado, as minhas caixas de som sempre estouravam nas notas graves pretas e agudas brancas. Ou tudo gris ou tudo grão. A extensão que pegou fogo abriu um espaço preto para passar um rio na sala. Cascava da tomada ao chão, por onde lacraiava até o meu pé, parando no metatarso do terceiro dedo.
Um dia eu acordei deitada no teto e o chão tinha caído em mim, por causa das infiltrações subterrâneas geradas pelo movimento peristáltico do centro da terra e pela permeabilidade pluvial do terraço. Foram-se os meses com aquelas bolhas de água infiltradas na minha pele de gesso e cal.
Você sabia que um dia o céu vai cair na gente? É o que dizem.
De toda forma, empacotei todas as minhas coisas. Algumas, que ainda moravam nas caixas da última penumbra, eu espalhei pelo terraço e a minha cachorra comeu com farofa. Passou dias arrotando saudades. Como não coube tudo no caminhão, subi com o sofá vermelho e a cachorra nas costas. Quando eu cansava, nos revezávamos. Ela não aguentava muito tempo, porque precisava ficar se coçando das alergias que adquiriu no sobrado, então encostávamos o sofá na calçada e latíamos para os carros que passavam.
Entreguei a chave, mas não me despedi de você, porque estava almoçando. César, como agora, somos amigos, posso te dar um conselho. Você devia procurar um restaurante mais perto da imobiliária. Deve ser muito cansativo ir a este cenáculo a duas horas da imobiliária que você vai todo dia. Procure ser saudável.
Ainda não te disse! Outro dia encontrei Joel e ele me disse que o sobrado ao lado também tem a parte elétrica condenada e que a proprietária alugaria mesmo assim. Pela sua imobiliária. A maquiagem está boa, mas vocês deveriam passar mais blush nas paredes `a esquerda.
Quinze anos e dois terços depois do dia em que não nos despedimos, minha mãe me mandou uma mensagem dizendo que vocês estavam nos ameaçando porque eu deixei o lixo. Tudo bem César, não precisa se culpar, eu sei que foram intimidações carinhosas. Você não acreditaria se eu te contasse o que acontece com o lixo quinze anos e dois terços depois. Primeiro uma nuvem de moscas garante a proteção do embrião, depois crescem braços e pernas molengas como macarrão podre e por último se transmuta num Megazorde de detritos arremessador de ovos, larvas e pupos.
Mesmo que vocês tenham tentado colocar fogo na gente e nos matar de sede e implosão em alguns momentos, eu voltei no sobrado, apesar de todos os riscos, memórias, jus postulandi, buracos de rio, tetos desabando e aquela videira presa, chorando baixinho que nem se matar consegue. Sancho Pança me ajudou, se isso lhe tranquiliza, apesar de ter mais motivos do que você imaginaria para não fazê-lo. Talvez para isso tenhamos invocado forças ocultas, mas só descobriremos em breve. É certo que algo de malígno e lindo aconteceu.
Dê um beijo na esposa e um abraço nas crianças, daqueles em que se fica girando e girando até voar ou cair.
Com carinho,
Clarice
Talvez as coisas deviam não ser ditas...mas se não houvesse essa cócega de querer dizer algo à alguém que mude a próxima atitude dela na vida acho que viver não teria sentido; nem por quê; porque a vida consiste em fazer coisas, falar coisas, ouvir coisas, sentir coisas, pensar coisas...
ResponderExcluirE digo mais Clarice!
Eu sinto cócegas quando leio suas coisas...porque me fazem querer dizer coisas que talvez eu não tenha coragem o suficiente de dizer...porque eu tenho medo do que isso faça você fazer...eu tenho medo do que eu faça! Eu às vezes tenho medo (ninguém sabe que às vezes sentimos medo), e com isso me sinto mais viva...e me sinto viva quando falo com você, porque me faz sentir a tal cócega!
Mulher! Tu é foda!putaquepariuminhanossasenhoradooquêeufaçocomisso!
ta maravilhoso! faz o exercício de diminuir ele caso a gente precise para a cena! ;)
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