segunda-feira, 26 de março de 2012

memória submersa 3: pai

"Ele era eu, anão, ele era todo pra fora e ao mesmo tempo era todo pra dentro. Ele era pra fora no dar, ele dava as coisas que tinha, dava coelhos, carneiros, cordeirinho, arroz feijão pra todo mundo. Nisso ele era pra fora, apesar de que esse pra fora vem de dentro. Depois ele era pra dentro nos adentros, ele entrava no curral e ficava se desentranhando, achando o mundo cheio de gente triste, achando a vida bonita mas cheia de gente de ferro, gente dura como coisa muitíssimo dura, ele não era simples não, nada disso, era homem muito complicado, muito torcido como eu mesmo, e quando eu digo que ele se desentranhava quero dizer que ele ficava se descobrindo, que ele punha pra fora os pensamentos de dentro, que ele pensavamenteava alto, entendes? Ele falava alto. Ele dizia: meu Deus, meu grande Deus. Ele falava alto no curral, no meio das vacas, ele falava alto e pensava estar sozinho mas eu ouvia tudo, ouvido limpinho, olho fresco, ele falava assim: meu Deus, por que o mundo me comove tanto? E só dar dois três passos ver o olho do cavalo, ver o olho da vaca, ver o homem meu Deus, o homem, esse abismo mais fundo que me come, meu Deus, a memória tristíssima de tanta inocência, como eu gostaria de arrancar a minha pele sem medo e mostrar o meu todo para o outro. Ele dizia meu Deus, assim com esse corpo, assim com esse sangue, AHHHH, eu existo até onde, eu existo até... até... até que grande muro eu existo?"
Hilda Hilst- Fluxo-Floema


Em 1935, Apolônio de Almeida Prado Hilst, pai de Hilda Hilst, fazendeiro de café, escritor e poeta, é diagnosticado esquizofrênico paranóico.

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