quarta-feira, 28 de março de 2012

algo mais concreto


Prólogo
(Ela está sempre à procura de paredes que não existem num teatro ou como possibilidade de cenário para a peça. A presença das paredes se faz por sua ausência, o processo do panóptico é a sensação de estar sendo observada do início ao fim e a busca por apoios breves, fricções de afeto. A parede nesse caso é apenas a sensação do panóptico e a janela, a possibilidade do estrangeiro. Início. Ela de costas ereta descrevendo uma parede ao fundo da cena, o mofo de uma parede antiga que se torna céu. A cena é por inteiro céu, e ela se mantém num movimento de locomoção que parte da resistência da sensação de estar sendo puxada para a platéia como uma ímã na coluna. Trilha sonora. Ápice. Fim. Início.)

Clarice: Você não deve ter impermeabilizado bem o terraço, porque agora eu posso ver o mofo na parede azul, que antes me parecia horrível, de um branco acinzentado, com pontinhos embolorados amarelos que se expandíam à medida em que se aproximavam do teto. Os amarelos antigos, esverdeavam e novos pontinhos pareciam surgir toda vez que olhava a parede. Me incomodava. O borrão cinzento me invadia e eu já não suportava mais. A água que faltou este tempo todo deve ter ressecado uma parte de mim, porque já não me comovem mais os patos, as portas, as pinças, os potros, os panos e todas aquelas coisas que costumavam fazer cosquinha nas minhas entranhas. O sistema elétrico monofásico me deu curtos monogâmicos. Ambos com sombras-bombas-relógio de um porvir autodestrutivo.A água sobe pelas brechas da madeira, escorre pelas paredes da casa, o som é quase azul. Lembra do dia em que acordei deitada no teto e o chão tinha caído em mim, por causa das infiltrações subterrâneas geradas pelo movimento peristáltico do centro da terra e pela permeabilidade pluvial do terraço? Foram-se os meses com aquelas bolhas de água infiltradas na minha pele de gesso e cal. Agora já não mais parede e eu toda mofo para além de lá atrás tão branco acinzentado com esses bolores amarelos, de forma que eu mudo o contraste apenas variando a pressão dos olhos. E de repente é tão nuvem que se eu continuar olhando, por mais alguns minutos, sei que chovo. E de repente é tão imenso que fico tímida. Tenho medo de não achar belo. Já enxergo mais azul do que cinza, transbordando a sala, ficou maior do que ela, maior do que a casa... Agora acredito no seu direito de ser céu se quiser. Dá vontade de gritar: A terra é azul! Maligno e lindo, esse céu. É meu. (pausa). Início.

(Entrada Padu, Analu já estava em cena: entrou no texto da Clarice. Luz mais geral. Suspensão. Dispersão, Clarice volta ao lugar inicial. Padu desconstrói uma das bases de cano da estrutura do cenário. Analu se mantém observando. Padu sai segurando cano. Analu segue a mesma tragetória.)

Passagens Padu e Analu

Clarice: A poeira fina que ocupava o espaço onde antes ficava a sua estante, eu varri como quem varre os destroços de uma guerra. O vazio não. Eu bem que tentei. Só tentei. O vazio só é. Só sou. So so... muito mais que. não. anonimato é só metade da brincadeira. Me sinto menos livre que o mesmo desespero que eu chamo de só. muito menos que... não. agora não mais... e só. O mofo da parede eu só vi agora, depois que as suas coisas saíram debaixo da mesa. Você vai ter que voltar pra me ajudar resolver, quando vier dar uma força com as garrafas de cerveja, que você bebeu, diga-se de passagem. Não esquece tá?!

Padu:Chega.

Clarice: Eu to falando de dor.

Padu sai

Padu e Analu de passagem

Clarice para padu: É nova.

Padu: O que?

Analu sai

Clarice: A cortina. Comprei ontem, gostou?

Padu: Sério? É...

ameaça sair

Clarice: Você teria um tempinho pra me ajudar? Desculpa, é que eu te vi passando e você é diferente das pessoas que passam por aqui.

Padu: É?

Clarice: É. Você parece mais inteligente e além disso você é mais alta que eu.

Padu: Não sou não.

Clarice: É sim. É só um minutinho mesmo, pode subir em mim... É só pegar aquele livro ali em cima.

Padu: É sério isso?

Se posiciona para que Padu suba. No final, está de quatro. Padu está montada esticando inutilmente os braços

Padu : Acho que não está funcionando.

Clarice: É rapidinho mesmo... Você foi a única a passar que eu tive certeza que conseguiria.

Padu: Não é melhor fazer pezinho?

Clarice: Pode ser... É rapidinho...

Padu: Sério?!

As duas se esforçam para conseguir. Analu volta.

Analu: Lembrei! é que, por exemplo, um cachorro lá é dog.

Clarice: Que bom que você voltou. Assume aqui o meu lugar. Acho que com vocês duas vai dar mais certo

Analu segura Padu. Padu começa a escalar Analu

Analu: Aí é isso, Dog é cachorro. e Deus é cachorro ao contrário. Mas cachorro andando pra trás. É tipo: God, entendeu? Ao contrário

Clarice para Padu: Desculpa

Analu: Desculpa eu não sei

Padu: Não

Padu continua se esforçando para escalar Analu.

Analu: Então o certo seria que Deus, aqui, fosse orrohcac.

Clarice: Desculpa por tudo?

Padu: Não

Clarice: Desculpa por alguma coisa?

Padu: Não

Analu: Ou oãc. Dog, cachorro. Mas eu tenho uma dúvida. Dog é um cachorro de lá, mas se vissem um cachorro aqui seria cachorro ou dog? Deve ser cachorro mesmo mesmo. Mas um mesmo cachorro não pode ser cachorro e dog porque um corpo não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo

Clarice: Desculpa por todas essas memórias?

Padu: Não.

Clarice: Desculpa as falha e... os buracos?

Padu: Não.

Clarice: Desculpa ter jogado pela janela a coleção de poeira que a sua avó e deu e que me dava alergia?



Analu: é física



Clarice: E esse silêncio?

Padu: Não desculpo.

Clarice: O que você não desculpa?

Analu: ué, e Deus?

Padu: Não desculpo tudo, não desculpo alguma coisa, não desculpo todas essas memórias, não desculpo as falhas nem os buracos, não desculpo a cleção de poeira que a minha avó me deu e você jogou pela janela.

Clarice:

Analu: Deus pode né, gente?

Padu: E esse silêncio?

Clarice: é o que fica

Padu: Não. o silêncio vai. Você fica.

Clarice: E você?

Padu: Eu também fico.

Clarice: Enquanto...

Padu: Enquanto eu não te desculpar.

Clarice: Vamos ficar aqui pra sempre?

Padu alcança o livro.

Padu: É esse, gente?

Analu: Deus pode ocupar quantos lugares ele quiser ao mesmo tempo...

Padu: É esse?

Analu: ...e mesmo assim eles tem God. Então God é um Deus deles.

Padu: (completamente desequilibrada) Peguei?!!!

(Analu avança engajada na discução com a Padu. Padu segura a estrutura e os pês ficam no ombro da Analu com o corpo suspenso e esticado. O livro fica preso.)

Clarice: Politeístas desgraçados!

(Desce.)

Padu: (uma mistura de choro com riso) Não quero mais...



Clarice: Parece que o tempo tá andando pro lado.

...

Padu: Quer um beck?

Clarice: Não fumo.

Analu: Que bom, faz bem.

Um comentário: